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AS CRIANÇAS QUE JÁ NASCEM PRESAS

 

 

            Uma pequena parcela de crianças cumpre pena sem nunca ter cometido nenhum ato infracional. Elas já nascem encarceradas junto das mães, menores infratoras. No Brasil, enquanto os bebês que nascem em presídios são separados logo após o período inicial de amamentação – os nascidos em Fundações Casa acordam, crescem e dormem privados de sua liberdade, esperando suas mães serem ‘reabilitadas’ de volta à sociedade.

 

            A pequena Maria tem um ano e cinco meses. Ela já fala de tudo, copiando livremente as conversas ao seu redor. Maria também gosta de andar, desajeitadamente com suas perninhas gordas e sapatinhos cor-de-rosa, pedindo colo as suas muitas “tias” e “avós”. Entretanto, seu espaço de locomoção é limitado pelo perímetro gradeado da unidade feminina paulistana da Fundação Casa, a Chiquinha Gonzaga.

 

            A área do quarteirão na Mooca ocupado pela Unidade é todo o universo que a criança conhece, com exceção do hospital onde nasceu e das visitas rotineiras ao pediatra. Mais precisamente, Maria conhece os arredores da casa do Programa de Acolhimento Materno-Infantil (PAMI), onde vive atualmente com sua mãe, funcionárias da fundação, mais dez adolescentes com seus próprios bebês e uma ainda grávida.         

 

            Seu mundo é a pequena casa, com janelas coloridas em tons pasteis que contradizem suas barras de ferro, além do modesto jardim que circunda a unidade. Lá, onde é a criança mais velha entre as crianças mais novas, se desenvolve, ganhando a cada dia a consciência de que precisa – e quer – mais espaço. Sua mãe, Carolina, 19 anos, foi internada dois dias antes de seu nascimento. “Cheguei grávida de 8 meses, passei pela Ruth Pistori (Unidade Provisória Feminina) e vim pra cá. Foi desesperador tudo isso acontecer de uma vez, cheguei aqui chorando”.

 

            Carolina tem outra filha de outro pai, Gabriela, de 4 anos, que vai visitá-la aos domingos junto com sua mãe e irmãos. “Sinto muito a falta dela, ela e a Maria se dão bem, mas ela não entende porque no final a Maria pode ficar e ela não. Ela pergunta por que tem que ir embora e fica confusa. E a Maria, qualquer pessoa que vai pra rua ela quer ir junto”.

 

         O Pami é o primeiro programa do tipo no país, segundo o diretor da unidade, Ezeilton Rodrigues de Santana, “O Pami é referência nessa questão de mães e gestantes”. Em todos os outros estados as menores infratoras que estão grávidas ou tiveram o bebê depois de internadas, dividem espaço com as outras meninas. Algumas vezes, as meninas grávidas são transferidas das outras unidades para a Chiquinha Gonzaga. São apenas três unidades femininas da Fundação Casa em todo o estado.

 

            Além da condição de mães, a rotina das internas tem outras especificidades em relação aos meninos que cumprem medida socioeducativa. As adolescentes sofrem muito mais com o abandono dos parentes. “Tradicionalmente, as meninas não têm a quantidade de visitas que os meninos têm. Elas sofrem algum tipo de preconceito por ‘envergonhar’ a família, é um fenômeno no Brasil todo.”, afirma o diretor da Unidade. Os parentes do sexo masculino, principalmente, costumam se recusar a passar pela revista íntima, e os pais dos bebês na maioria das vezes acabam abandonando as adolescentes e os filhos.

 

            O caso de Carolina foi diferente, seu ex-namorado e pai da Maria chegou a visitá-la algumas vezes, mas acabou sendo assassinado. Carolina diz que já imaginava que isso fosse acontecer. “Fiquei sabendo isso pela minha mãe. Não fiquei muito mal, fiquei um pouco. Eu esperava algo do tipo porque ele também era da vida errada, então tinha duas opções: ou ele ia preso ou era morto.” Muitas vezes as menores são internadas na Fundação Casa por crimes passionais, nos quais são levadas a praticar o ato infracional por namorados ou companheiros. O mesmo é muito frequente em penitenciárias femininas, principalmente nas prisões por tráfico.

 

    Carolina parou de estudar aos 16 anos, quando estava no primeiro ano do ensino médio. Nessa época, começou a andar com traficantes do seu bairro, usar drogas e “sumir” de casa, deixando a filha mais velha com sua mãe. Ela não gosta do curso de garçonete que faz na Fundação Casa, pretende trabalhar no salão de beleza da sua mãe para pagar uma faculdade de Direito.

 

          “Quando eu era pequena eu falava que queria ser advogada pra defender meu tio, só que ai eu esqueci esse sonho e fui viver no mundo, esqueci tudo, não quis viver mais nada, quis só viver no mundo onde eu vivia. Aí voltou esse sonho de hoje de ser advogada. Eu queria defender meu tio porque ele fazia coisa errada. Da família da minha mãe eu sou a primeira que foi “presa”, meu tio é da parte de pai”. 

 

            Para Carolina, a proposta de redução da maioridade penal não será a solução para reduzir o número de crimes cometidos pelos adolescentes. “Tem muita desigualdade né? Tem uns que tem muito e uns que não tem nada, aí através disso os que não têm nada querem ter muito e às vezes não tem oportunidade. Tudo bem que na maioria das vezes eles não correm atrás das oportunidades, porque é tudo mais fácil. Mas muitas vezes dependendo dos lugares a gente é desrespeitado, tipo ‘ah, porque você mora ali [você é inferior]’. Eles são muito influenciados também, sabe? Querem uma roupa de marca, querem um negócio e acabam fazendo. Comigo não, foi mais a emoção mesmo, sabe? De estar ali, com o grupo mais legal, mais respeitado”.

 

             Além disso, a adolescente acredita que a situação das mães encarceradas é muito pior do que a sua. “Se eu tivesse em uma prisão normal a Maria não teria mãe né? O mais importante é a mãe para o filho, e o filho pra mãe. Lá seria mais difícil, porque aqui a gente ta privado da liberdade, mas tem muitas pessoas trabalhando pra você mudar, ter um futuro melhor. Na cadeia não, já era.”

 

           A maioria das meninas internadas no PAMI não tem outros filhos, e por isso, elas aprendem a ser mães lá dentro. “Aqui nós temos a adolescente em dois aspectos: em confronto com a lei e em confronto com a maternidade. Tudo sobre maternidade somos nós que ensinamos, como amamentação, que tem a equipe de enfermagem pra orientar. Então, apesar de ser um ambiente fechado, aqui todo mundo conversa. A gente vai ensinando”, afirma Angélica, uma das funcionárias que convive com as adolescentes.

 

            As meninas acordam e já começam a cuidar dos bebês. A casa é dividida em dois quartos, onde as treze adolescentes dormem (e acordam várias vezes durante a noite), ao lado de seus respectivos filhos. Elas têm cursos profissionalizantes de manhã e terapia. À tarde, frequentam a escola dentro da Unidade, com as outras adolescentes, e esse é o único momento em que ficam longe de seus filhos. Segundo o diretor da unidade, as meninas na Chiquinha Gonzaga costumam estar atualizadas em relação à série do ensino formal, “já trabalhei com alguns dados de unidades masculinas e as meninas geralmente estudam mais e estão mais adiantadas”. Enquanto estão na escola, as funcionárias da unidade cuidam dos bebês, junto das mães que ainda estão de licença maternidade. Uma delas é Lisa.

 

            Mãe de Alexandre de três meses, o bebê mais novo da unidade, Lisa tem 15 anos e gosta de filosofia, de visitar a Galeria do Rock e quer aprender japonês. O nome do seu filho é inspirado no vocalista de sua banda favorita, e no berço do bebê há uma pilha de livros. Há nove meses na Fundação, Lisa diz que não recebe mais visitas de seu pai e de seu irmão mais velho, pois nenhum dos dois aceita passar pela revista vexatória. “Meu pai já veio, mas não gosta de fazer revista íntima (...) ele pensa: ‘eu não consigo ficar pelado na frente de um homem e agachar’”. As visitas que Lisa recebe são de sua mãe e de seus outros irmãos. Segundo a adolescente, sua mãe não deixou o pai do bebê assumir a criança: “Minha mãe já criou filho sozinha. Já vi tanta mulher criando filho sozinha, eu consigo também”.

 

            Lisa acredita que o alto índice de menores internadas que são abandonadas pela família é fruto do machismo. “O preconceito contra a mulher ainda é natural. Nossa sociedade ainda é muito patriarcal”. Ela diz que amadureceu muito em seus nove meses de internação. “A gravidez por si só já te obriga a amadurecer rápido, principalmente se você é adolescente”. Porém, reclama da dependência da situação de internação. “Eu dependo de alguém, ou da minha família ou de funcionários pra conseguir o livro que quero ler, por exemplo”.

 

            A adolescente critica, principalmente, o corte de gastos do governo com a Fundação Casa e a falta de estrutura da unidade, afirmando ter perdido quatro pré-natais seguidos durante a gravidez, devido a problemas de transporte: “Há algum tempo acabou o contrato com os carros. Agora precisa vir carro de não sei onde pra buscar a gente, antes tinha um carro que ficava direto. E aqui, querendo ou não, tem o PAMI, tem bebês, tem grávidas. Agora tem uma gravida com 39 semanas, e se ela entrar em trabalho de parto e não tiver um carro aqui? E se um bebê caí e bate a cabeça no chão? Como que vai levar pro hospital se não tiver carro? Isso já faz mais de dois meses e eles não fizeram outro contrato. A gente tenta conversar, porque é muito chato”.

 

            Essa é apenas uma das negligências que as presidiárias e as meninas cumprindo pena na Fundação Casa sofrem. A situação das mulheres encarceradas vem sendo ignorada há décadas pela imprensa brasileira, e apenas nesse semestre começou a ser problematizada, inclusive por setores do movimento feminista. Essa divulgação veio, principalmente, devido a publicação do livro Presos que Menstruam, escrito pela jornalista Nana Queiroz. Em uma grande reportagem, Nana expõe a luta diária dessas mulheres por dignidade.

 

            Entre os fatos descobertos pela jornalista, está a constante falta de itens de higiene básica feminina, como absorventes. Segundo Nana, as presidiárias chegam a utilizar miolos de pão como substituto dos absorventes internos. Além da questão da higiene, a jornalista destaca a violência sexual, as revistas íntimas vexatórias e o abandono, como questões que as mulheres têm que lidar na situação de cárcere. “As mulheres são 90% nas filas dos presídios. Os homens não se submetem, não estão acostumados com a submissão e a humilhação, como as mulheres”.

 

            Segundo dados do estudo Infopen Mulheres (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), divulgados no dia 5 de novembro pelo Ministério da Justiça, a população penitenciária feminina apresentou um crescimento de 567,4% nos últimos quinze anos (enquanto, no mesmo período, o número de presos homens aumentou em 220%). Dessa população, 50% têm até 29 anos, 30% não foram condenadas, 68% respondem por tráfico sem relação com organizações criminosas e a grande maioria têm filhos e são responsáveis pelo sustento do lar. São mães jovens, muitas vezes encarceradas injustamente, vivendo múltiplas violências contra seus direitos. Principalmente, são mulheres que ainda têm suas condições de feminilidade e maternidade negligenciadas.

 

Fonte dos Gráficos:
Relatório Ministério Público sobre menores infratores

Em tempos em que as frentes políticas mais conservadoras do país dominam o Congresso, pautas obscuras e clássicas dos partidos liberais vêm ganhando força na opinião pública brasileira, sendo transformadas em PECs - muitas vezes inconstitucionais - e forçadas sobre as minorias e classes oprimidas, em votações cuidadosamente arquitetadas (por quantas vezes forem necessárias para sua aprovação).

 

A redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, é o maior exemplo atual desse fenômeno reacionário que tomou o governo, principalmente após as eleições de 2014. Em completa oposição ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), marco legal regulatório dos direitos humanos dos menores brasileiros, a PEC 171/93 teve seu primeiro turno votado pela Câmara dos Deputados no início do mês de julho.

 

Após uma votação inicial na qual a PEC foi derrubada por uma diferença de 5 votos, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara, articulou a apresentação de uma emenda aglutinativa, com texto semelhante ao original, conseguindo reverter a derrota.

 

Cunha apenas retirou o crime de tráfico de drogas, tortura, terrorismo e o roubo qualificado para conseguir realizar a nova votação. Alguns parlamentares criticaram a manobra do peemedebista e entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a anulação da votação.

 

A manobra de Cunha colaborou ainda mais para reascender o debate sobre a redução entre a população brasileira. Desde então, diversos veículos da grande mídia vêm opinando sobre a legalidade da PEC, apontado estatísticas de crimes entre a população jovem e entrevistando, principalmente, familiares de vítimas de homicídios realizados por menores.

 

Os atos infracionais graves, entretanto, são minoria absoluta entre os que levam xs jovens aos Centros de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente, popularmente chamados de Fundação Casa (antiga FEBEM). Segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça em abril desse ano, apenas 0,5% dos crimes hediondos são cometidos por menores de idade, enquanto a participação no tráfico de drogas, em roubos e em furtos, representa quase 90% das infrações realizadas por jovens, segundo o Ministério Público de São Paulo.

 

Dessa forma, ao mesmo tempo em que a grande mídia tem distorcido deliberadamente estatísticas, pautando a opinião pública em um período crítico entre votações (a PEC foi aprovada no segundo turno da votação da Câmara dos Deputados no último dia 19, com 320 votos a favor e 152 contra - superando os ⅗ de votos favoráveis necessários - seguindo agora para o primeiro turno da votação no Senado); esses mesmos veículos têm deixado de ouvir e dar voz para a parcela mais afetada pela PEC: xs próprixs jovens internxs da Fundação Casa.

 

INTRODUÇÃO
OUVINDO OS MAIS AFETADOS PELA PEC DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

VOZES DA FUNDAÇÃO

APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS:
bio
NO NOVO TEMPLO

 

—   Visita! Visita!

 

— Pode subir aí, gente!

 

        Os adolescentes internos da Unidade Novo Tempo da Fundação Casa vestem suas camisetas apressados. É domingo, dia de visita nas cinco unidades do complexo socioeducativo de Franco Da Rocha. No entanto, são poucos os que recebem suas famílias. Os motivos variam, desde a distância entre suas casas e a Fundação até a vergonha de fazerem seus parentes, principalmente mães e irmãs passarem pela revista vexatória. Assim, a maioria dos adolescentes aproveita o dia de folga para jogar futebol, tênis de mesa ou dominó na quadra, que ocupa o terceiro andar do prédio.  Esses recebem os voluntários da ONG Papel de Menino, que há dez anos realiza projetos sociais para meninos que estão cumprindo medida socioeducativa em Franco da Rocha.

 

        Poderia ser o recreio de muitas escolas públicas do país, se não fosse pelo muro farpado de mais de cinco metros que cerca o perímetro do prédio, tirando a vista do “mundão”, e o fato dos meninos serem obrigados a se referir a todos como “senhor” ou “senhora” (com exceção deles próprios). O Centro Novo Tempo é um dos 71 construídos após a Lei Estadual 12.469/06, que reformulou as antigas Fundações Estaduais para o Bem Estar do Menor (FEBEM). A capacidade desses centros é de 56 adolescentes, mas uma liminar no STF permite até 15% de superlotação. Em julho, o centro abrigava 60 meninos.

 

        De segunda a sexta os adolescentes estudam no período da manhã e realizam cursos livres durante a tarde, como artesanato, street dance, artes cênicas, informática e matemática; além de cursos profissionalizantes de garçom, eletricista, entre outros, disponibilizados pelo SENAC. No resto do tempo, assistem filmes escolhidos pelos funcionários, jogam na quadra ou leem os poucos livros, em sua maioria religiosos, que ficam disponíveis em uma cesta. Não há biblioteca ou sala de jogos nessa unidade, o primeiro andar é ocupado por salas de aula e refeitório e o segundo por dormitórios.   Naquela semana, porém, os adolescentes assistiram à reportagem do Jornal Nacional sobre a aprovação em primeiro turno na Câmara da redução da maioridade penal. Mesmo que a maioria dos internos não seja afetada pela emenda aprovada, por não terem praticado ato infracional hediondo, grande parte dos meninos pede explicações sobre a PEC aos voluntários da Papel de Menino, preocupados com a sua situação: “Mas e o tráfico, senhor?”.

 

        Todos os adolescentes com quem conversamos afirmaram ser contra a redução da maioridade penal, mesmo que timidamente, parecendo temer  um aumento no tempo de pena ao darem sua opinião sobre um assunto tão sério. Alguns se opõem à redução por enxergam nas atividades proporcionadas pela Fundação uma oportunidade que não teriam nos presídios, já que boa parte deles não frequentava mais a escola antes de serem internados; outros, acostumados a ouvir histórias de amigos sobre o sistema carcerário, entendem que sua situação seria bem pior com a aprovação da PEC: “Aqui pelo menos nós é respeitado. Ninguém bate em nós. Pelo menos não aqui, no Brás rolava treta”.

 

        O “Brás” é como os internos chamam (e onde se localiza) o complexo de unidades provisórias de internação, pra onde todos os menores são encaminhados após passarem pelas delegacias paulistanas e enquanto seus processos são julgados. Os abusos cometidos pelos funcionários do Brás são consenso entre os adolescentes. Desde a falta de itens básicos de higiene, a proibição de contato visual e físico entre internos, até agressões verbais e físicas, os 45 dias passados na provisória são lembrados com raiva pelos meninos.

 

        Lá dentro, os adolescentes têm seu comportamento avaliado semanalmente e exposto em um quadro localizado no primeiro andar. Etiquetas verdes dividem aqueles que têm um bom comportamento, e portanto não terão tempo acrescido à pena, daqueles que cometeram algum desacato ou infração grave, recebendo etiquetas amarelas e vermelhas, respectivamente, acrescentando um mês ou três meses à pena decidida pelo juiz. Naquele domingo todas as sessenta etiquetas estavam verdes.

 

        A entrada dos voluntários é feita de uma maneira diferenciada das demais pessoas. Nenhum deles precisa passar por revista vexatória – que apesar de serem proibidas em presídios adultos, ainda são realizadas nos centros socioeducativos. Já os familiares dos meninos são obrigados a passar pelo constrangimento de tirar as roupas na frente de desconhecidos, abaixar-se e suportar a inspeção de suas partes íntimas, com a justificativa de que podem transportar algo ilícito. Além disso, não podem entrar vestindo nenhum calçado além do chinelo concedido pela Fundação. Essa é a principal crítica dos adolescentes em relação à Fundação Casa, e o motivo de muitos deles não aceitarem a visita de suas mães, irmãs e namoradas.

 

        É o caso do adolescente João*, de 15 anos, que vai ter uma filha enquanto ainda está internado, mas não deixa a ex-namorada visitá-lo, pois considera a situação da revista íntima degradante, ao mesmo tempo em que não quer expô-la aos comentários dos outros internos. Por esse motivo, o adolescente diz que prefere falar no telefone com a futura mãe de sua filha. Os internos tem direito à uma ligação por semana, caso não recebam ninguém.

 

        João contou sua história para suas “visitas” um pouco antes de todos os meninos serem convidados a participar de um culto, realizado pela Papel de Menino a cada quinze dias na Unidade. Um membro da ONG que se identificou como ex-presidiário pregou uma parte da cerimônia, na qual – mesmo sendo uma atividade opcional – todos sentaram, por alguns minutos, com as cabeças raspadas abaixadas entre as calças de moletom, imitando os voluntários, esses vestidos com camisetas onde se lia o trocadilho “Eu faço meu papel”.

 

        Depois, todos se reuniram em pequenos grupos, nos quais os adolescentes assumiram que não costumavam frequentar a igreja antes de serem internados ou que se “desviaram” ao longo do tempo. Alguns choraram, discretos, e outros resistiram silenciosamente à pregação. Os voluntários pediram a deus que perdoasse a alma dos meninos, deram alternativas para a suposta “adrenalina” proporcionada pelo crime e distribuíram chocolates e salgadinhos, os únicos objetos que podem ser levados pela ONG, além de bolas esvaziadas e a pequena bíblia do pastor.   Essa é a única vez no mês em que os meninos tem acesso à esse tipo de comida, esperada ansiosamente. No final do horário de visitação, um adolescente se aproxima e pergunta:

 

        - Quer chocolate senhor? Não? Ah, Você pode comer lá fora, né...

 

*Nome fictício 

 

 

 

ENTREVISTA PROF. DR. ROBERTO DA SILVA

Você foi uma exceção à regra. Conseguiu sair da FEBEM e do Carandiru e depois se formar em pedagogia, cursar mestrado e doutorado. Por que isso não acontece com os outros internos?

 

Alguns tentam explicar que isso é obra do destino, que independe das pessoas. Alguns acham que é a mão de Deus, há aqueles que acreditam que foi obra da "reabilitação social",e há outros que acham ser obra da meritocracia, resultados dos esforços do próprio indivíduo e cientificamente usam o termo "resiliência" para explicar a sobrevivência às adversidades. Nenhuma destas alternativas explica o fato de eu ter saído inteiro, íntegro e mais maduro destas situações: é uma conjunção destes e de outros fatores e esta é a beleza da experiência humana, ninguém pode afirmar o que ou no que ele vai se transformar ao longo dos anos.

 

 

O Governo Militar logo que aplicou o golpe, criou a FEBEM e estatizou o setor de atendimento a crianças e adolescentes abandonadas junto com os infratores. Por qual motivo você acha que foi tomada essa decisão?

 

 O fato desencadeador da criação da FUNABEM [Fundação Nacional do Bem-Estar ao Menor] em Dezembro de 1964 foi o assassinato do filho do Ministro da Justiça da época em um dos morros do Rio de Janeiro, mas o regime militar já vinha acusando o Poder Judiciário e a sociedade de serem incompetentes no trato da infância no Brasil. A estratégia foi deslocar o problema da infância para a Lei de Segurança Nacional, copiada dos Estados Unidos, que copiou também o modelo Funabem/Febem do Boot Camp, sob responsabilidade do Exército americano.

 

 

Você acha que a sua entrada na FEBEM influenciou na sua prisão quando adulto?

 

O que influenciou foi a forma como fui desligado da Febem ao completar 18 anos de idade e isso ainda continua acontecendo em abrigos do Brasil inteiro. Pessoas que passaram suas vidas inteiras sob tutela do Estado, organizações religiosas ou da sociedade civil, sem exercitar a autonomia, a liberdade e os atos próprios da vida de qualquer criança ou adolescente ao completar a maioridade são jogado à própria sorte, sem assistência, acompanhamento ou orientação.

 

 

Você acha que os cursos extracurriculares da Fundação CASA são efetivos? Havia isso na FEBEM?

 

Os cursos e as atividades ainda hoje oferecidas aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa atendem mais às necessidades institucionais, de cumprir a lei e de propagar suas boas práticas do que as necessidades efetivas de meninos e meninas. É possível ter uma coleção de certificados e de diplomas que mostram a forma como foi ocupado o tempo da internação, mas que não são suficientes para subsidiar um projeto de vida, alimentar sonhos ou colocar estes meninos e meninas em condições de competir pelas oportunidades que a sociedade cria.

 

 

Existia influência do crime organizado na FEBEM?

 

Na antiga Febem a influência mais presente era a militar, tanto que muitos, principalmente meninos, eram destinados a servir as Forças Armadas. A rigidez dos horários, a disciplina nos espaços coletivos, aprender a marchar, bater continência, fazer filas, cantar e tocar hinos militares e fazer muito esforço físico faziam parte desta cultura militar. Se considerarmos que cerca de metade dos internos da Febem até o fim do Regime Militar foram parar na prisão depois da maioridade, podemos dizer que os ex-internos da Febem não estranhavam muito o ambiente da prisão e a cultura prisional, que à época tinha um caráter muito bairrista, de grupos formados a partir da origem geográfica dos presos na cidade e logo aprendiam a ética do mundo do crime, que era bastante diferente das práticas dos grupos que hoje dominam as prisões. Hoje a cultura prisional influencia mais a cultura institucional e interna das unidades de internação do que em qualquer época, não só pelo aliciamento precoce de crianças e adolescentes para o crime, mas também pelo fato de a Fundação CASA ter trazido muitas técnicas e metodologias de trabalho das prisões, além de funcionários e diretores. Vale lembrar que a própria presidente da Fundação é originária do sistema penitenciário.

 

 

A FEBEM foi substituída pela Fundação CASA por uma imagem desgastada. Você enxerga que houve uma melhora nessa troca?

 

Me ocupei de pesquisar isso e conclui que as mudanças foram de ordem administrativa e organizacional, com desmonte dos grandes complexos, descentralização das unidades pelo litoral e interior, construção de pequenas unidades e municipalização das medidas em meio aberto. O tratamento dado a funcionários do pátio e aos adolescentes não mudou: esta é a parte mais difícil e ainda constitui o grande desafio da Fundação e da política estadual de atendimento socioeducativo. As parcerias e os modelos pedagógicos experimentados não duraram e não dura o suficiente para substituir a cultura da antiga Febem, dos maus tratos, do desrespeito, da ociosidade e do uso fácil da violência para resolver qualquer situação que fuja à normalidade. Para a Fundação CASA não falta dinheiro, nem funcionários nem apoio político dos poderes executivo, judiciário e legislativo e até mesmo da sociedade e dos meios de comunicação, que prefere a internação, a punição e o endurecimento das leis, mas ela não consegue transferir este apoio popular político para dar qualidade ao atendimento dos adolescentes sob sua responsabilidade e valorizar os funcionários que mais diretamente assumem estas funções.

 

 

A seu ver, o que a fundação CASA herdou da FEBEM?

 

Herdou, sobretudo, o Direito Penal do Inimigo, que é a suposição de que quem infringe a lei agride e violenta a sociedade e por isso deve ser tratado com todo o rigor com que se trata o inimigo. Parte dos funcionários, inclusive mais jovens e os que vem do sistema penitenciário, com baixa escolaridade e sem uma estrutura de formação continuada e de supervisão adota esta postura e é deste grupo que surgem as denúncias de maus tratos, espancamentos , violências e negação de direitos. Há um grupo, de maior escolaridade e com outras experiências de trabalho que defendem a Doutrina da Proteção Integral, um dos fundamentos do Estatuto da Criança e do Adolescente e os dois grupos estão em constante tensão, o que faz com que a taxa de doenças profissionais e de afastamentos seja exageradamente alta no quadro de funcionários. O Direito Penal do Inimigo é uma doutrina de guerra e sua aplicação requer o embrutecimento do soldado, frieza, insensibilidade e coragem para dar ao inimigo 'o que ele merece'. Os funcionários que pensam assim se alimentam do ódio social, dos marqueteiros do crime e da sanha vingativa de parte da sociedade, mas ele são tão maltratados e discriminados quanto os adolescentes sob os cuidados deles, além de reproduzirem seus problemas em casa com a família e filhos, caírem no alcoolismo e nas drogas e terem uma péssima qualidade de vida. Na guerra você vê soldado 'bonzinho'? E pode uma filosofia como o Direito Penal do Inimigo formar técnicos e profissionais que respeitem a dignidade humana, que promovam os direitos civis, sociais e políticos ou que trabalhem sob a perspectiva de conceder ao outro uma segunda chance?

 

 

O que você acha que aconteceria se a redução da maioridade fosse aprovada?

 

Uma pequena parcela da adolescência brasileira, cerca de 500 ou 600 em um universo de aproximadamente 22 milhões de brasileiros, deixaria de ser 'pessoa em fase peculiar de desenvolvimento', deixaria de receber do Estado a 'proteção integral' e da parte da sociedade não teria mais a 'prioridade' do atendimento nas políticas públicas, isto é, deixariam de estar sob a proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente e seriam julgados, condenados e tratados como criminosos. Para estes poucos adolescentes e os que dai para a frente forem enquadrados como criminosos o futuro está dentro da cadeia e o que ela reserva ao preso não é exatamente o melhor da vida e fazer da cadeia um meio de aprendizagem e de amadurecimento para as coisas da vida não é uma tarefa fácil. Veja que entre 60 e 85% dos presos que saem voltam e isso quer dizer que a primeira prisão não foi suficiente para esta aprendizagem e amadurecimento. Alguns voltam duas, três ou mais vezes se ficarem vivos nas ruas, tem aqueles que nunca mais vão sair da prisão e os que acabarão suas vidas dentro da prisão. Para a família, a religião, a sociedade, a escola e as comunidades ficará o sentimento de fracasso, de incompetência na educação dos seus próprios filhos e membros e não será de se estranhar se daqui a algum tempo se sentirem envergonhados e engrossarem o coro daqueles que hoje denunciam e se indignam diariamente com as mazelas do sistema penitenciário brasileiro. Para o Brasil diante do mundo ficará a imagem do retrocesso, da covardia e da incompetência da classe política. Um país que foi exemplo pela aprovação do ECA, elogiado pela comunidade internacional pelo esforço de construir e implantar uma política especial para a infância e adolescente resolve afrontar o que há de mais avançado em matéria de direitos humanos apenas para demonstrar força e poder diante da sociedade mandando para a cadeia um minguado grupo de adolescentes pobres, afrodescendentes, de baixa escolaridade, sem profissionalização, sem apoio familiar e com pouca ou nenhuma chance de saírem do ciclo de marginalização social em que vivem.

 

O que o governo precisa fazer para que as medidas socioeducativas sejam realmente eficientes?

 

O ECA tem mais de 260 artigos e o único em questionamento na sociedade hoje é o que define as medidas socioeducativas e o tempo de internação. Os artigos que se referem aos direitos fundamentais da criança, do adolescente e de suas mães e que legislam sobre direitos e obrigações da família, acolhimento, guarda e adoção estão em constante revisão e aperfeiçoamento. O mesmo acontece com os artigos que instituem as políticas de creche, educação, saúde, proibição do trabalho infantil, eliminação da exploração sexual, transporte e viagens, documentação, etc. Estes ainda precisam de aperfeiçoamentos, mas não são tão ardorosamente contestadas por qualquer setor da sociedade. Isso significa que estas políticas são satisfatórias, que fizemos todas as lições de casa e que todos os direitos previstos em lei estão sendo garantidos? Claro que não, 25 anos depois da aprovação do ECA mesmo o que consideramos conquistas ainda precisa de aperfeiçoamentos, como o caso da universalização da Educação Básica, que precisa chegar a 100%, mas com uma padrão de qualidade que seja aceitável. Um país que coloca 45 milhões de crianças e adolescentes na escola e as mantem por 200 dias letivos, atendendo suas necessidades básicas de transporte, alimentação, saúde, uniforme e material escolar não pode alegar ser incapaz de lidar com um pequeno universo de 500 a 600 adolescentes porque cometeram erros mais graves do que seria admissível para a sua idade. Ouso dizer que é o Estado de São Paulo que sinaliza para o país esta ideia de fracasso e de incompetência, por não aceitar levar a cabo o processo de transformação da antiga Febem, por não dar continuidade às parcerias e às experiências pedagógicas que as ONGs trouxeram, por não estreitar a colaboração com a família, a escola e as comunidades locais, por não investir na formação de seus técnicos e funcionários, propondo mudar a lei antes que ela tenha sido efetivamente implantada. Se o Estado mais forte da federação, que tem a maior população de adolescentes em medidas socioeducativas dá estes sinais, o que esperar de estados mais afastados, mais pobres e que não tem a mesma infraestrutura e recursos que São Paulo?

 

 

Foi criada uma lei para colocar o ensino médio nos presídios. Qual a sua opinião em relação a isso?

 

A lei veio com atraso, afinal, cadeia a muito tempo já virou lugar preferencial para jovens e adultos. Ensino Médio é o caminho para a Educação Técnica e Profissional e o Ensino Superior, mas ele atende a uma parcela pequena de presos, não mais do que 10% e a prioridade mesmo é a alfabetização e a elevação da escolaridade de cerca de 60 a 70 presos que sequer concluíram o ensino Fundamental de 9 anos.

 

 

A frase ‘mais escolas e menos cadeias' realmente se aplica? Porque os internos sempre reclamam da escola e muitos deles já não estavam mais lá.

 

Qualquer adolescente gosta da escola e tem uma boa imagem e boas relações com ela. O que eles realmente não gostam é da sala de aula, da organização do ensino e dos métodos de trabalho e de avaliação dos professores. Quantitativamente é correta a frase, como também é correto dizer 'educar a criança para não precisar punir o adulto', mas o fato é que a maioria dos adolescente em conflito com a lei não estava estudando quando cometeram o ato infracional não por falta de escola, mas porque a abandonaram. E porque a abandonaram? A escola continua no bairro, seus amigos, irmãos, primos, etc, continuam estudando lá, as garotas que lhe interessam estão lá e a escola é o caminho direto para obter documentação, bilhete de transporte escolar para circular pela cidade, carteirinha de meia entrada para fazer o que ele gosta e ter acesso a um monte de coisas que sua família não lhe proporciona e até seus parceiros de bala e eventuais clientes do tráfico estão lá, então porque a abandonou?

 

 

 

Como você observa a relação entre os adolescentes e seus familiares enquanto estão cumprindo a medida? Acha que seria necessário um trabalho com as famílias também?

 

O Sistema Socioeducativo, incluindo defensores, promotores de justiça, juízes, equipe técnica das unidades de internação chamam a família para fazer com ela o mesmo que a escola faz: dar bronca, puxar a orelha, fazer ameaças e cobranças. E tal como na escola dos pequenos, principalmente creche e series iniciais do ensino Fundamental, a família vai porque quer garantir o atendimento de seus filhos, que preservá-los de violências e ameaças de direitos e, sobretudo, querem o bem deles, mas a família precisa de mais do que isso. Precisa de informação, de esclarecimentos, de apoio e de orientação não apenas nas situações de emergência, mas para o dia a dia, de como superar as péssimas condições de moradia que envergonha os filhos, como proporcionar a eles o que a televisão e a propaganda mostram como objetos de desejo do momento, como se qualificar profissionalmente, como melhorar a renda e como ter acesso a oportunidades fora dos círculos em que vivem. A família é a melhor opção para promover, garantir e defender os direitos de seus filhos, mas ela está enfraquecida, pauperizada e sem autoridade moral para conter seus filhos dentro dos limites de suas capacidades financeiras. Isso leva a família a fazer concessões e até mesmo a tolerar pequenas infrações, quando não, até mesmo a compactuar com as atividades delinquenciais de seus filhos. Quando o tráfico e o crime organizado interferem nestas relações o ciclo praticamente se fecha e sair dele se torna muito difícil. Fortalecer esta família, recuperar sua autonomia e restituir-lhe a autoridade moral sobre seus próprios filhos não é uma tarefa para a Fundação CASA, mas uma obrigação do Estado, da nação, da sociedade organizada, da Religião e da escola, que estão perdendo para o tráfico e para o crime organizado a disputa pela criança e pelo adolescente.

Roberto da Silva, professor da Universidade de São Paulo, conhece bem o lado de dentro das grades. Muito antes de se formar em pedagogia e dar aulas, ficou 24 anos encarcerado em instituições do Estado: uma década dentro do Carandiru e mais 14 anos em diversas unidades da extinta Febem. Sua primeira 'estadia' em um abrigo foi quando tinha apenas dois anos, em uma época que o governo, ainda militar, estatizou o atendimento de crianças órfãs e abandonadas.

Seus pais haviam se separado e ele, junto de um irmão de cinco anos e outro de seis meses, ficou com a mãe. Ela, após cada um dos seus filhos serem levados para diferentes unidades da Febem, foi para um hospital psiquiátrico.

Durante a adolescência, trabalhou, foi demitido, morou na rua e começou a usar drogas, voltando diversas vezes para a Febem. Na sua saída, sem apoio do Estado, cometeu crimes que o levaram ao presídio do Carandiru. Lá, ele lia filosofia, sociologia, ciência política e direito, conseguindo reduzir a sua pena e de seus companheiros de cela.

 Cumpriu dez anos e começou uma reviravolta na sua vida. Se articulou com um grupo de teatro da Faculdade de Direito do largo São Francisco, viajou como missionário ate chegar no Mato Grosso, onde prestou o vestibular para pedagogia na federal do estado e, depois, fez mestrado e doutorado  na USP, onde hoje atua como pesquisador e professor.

Tese de Doutorado: A eficácia sócio-pedagógica da pena de privação da liberdade

Trabalho produzido por Alan Felipe,

Júlia Dolce e Victor Labaki Agostinho para a aula Processos de Comunicação Alternativa

- Profa. Anna Feldmann

Comunicação Social - Jornalismo

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

Todos os nomes dos internos foram mudados para proteger sua identidade.

 

Fotografia: Júlia Dolce

Texto: Alan Felipe, Júlia Dolce, Victor Labaki Agostinho

Gráficos: Alan Felipe

Relatório Infopen - Mulheres Encarceradas
LINHA DO TEMPO - FUNDAÇÃO CASA E PROJETO DE LEI DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
RELATOS
IPÊ

 

        Na Unidade Ipê, localizada no complexo da Raposo Tavares da Fundação Casa, os menores só têm direito a ter fotos e cartas da família no quarto se mostrarem um “bom comportamento” e já estarem na terceira fase do sistema de evolução da pena. Mesmo assim, todas as cartas são lidas e analisadas por psicólogos funcionários da Fundação. Assim que são encaminhados para a unidade, os meninos entram no primeiro estágio, o de adaptação, seguindo para o de reflexão (no qual, por ironia, ganham como “recompensa” o direito de se olhar no espelho), para o de construção e finalmente o de conclusão.

 

        Diferentemente da Unidade de Franco da Rocha,

a Ipê foi reformada da Febem, sendo bem

maior e abrigando mais de 100

menores, de 12 a 15 anos e 11

meses.

Por esse motivo, além de

dormitórios e refeitório, a unidade

conta com uma biblioteca com

duas estantes delivros, uma

ludoteca com diversosjogos de

tabuleiro e uma sala de

televisão com tapetes de borracha.

 

        A estrutura da Ipê, no entanto,

ainda remete à antiga Febem, com

grades e portas de ferro nos

quartos. Além disso, os adolescentes

são obrigados a andar em fila indiana,

com as mãos para trás e as cabeças

abaixadas. Com treze anos de trabalho na

unidade, a coordenadora pedagógica Andreia da Costa

acredita que a mudança da Febem para a Fundação Casa

foi gradativa, e se deu principalmente na área da pedagogia.

 

        A educação é padronizada em

todas as unidades da Fundação Casa:

os menores cursam o ensino formal

em um período e cursos culturais e profissionalizantes no outro. Os professores do ensino fundamental e médio, concursados, vem da escola associada dessa unidade, a Oswaldo Walder. Já os outros cursos são ministrados pelo CENPEC Horizontes e pelo Projeto Guri, e vão desde aulas de graffiti e rimas, até panificação artesanal e horticultura (realizado em um canteiro improvisado ao lado do prédio).

 

        O curso de rimas, segundo os internos, é o mais concorrido. Lá, os jovens aprendem sobre a história de letras de rappers famosos e como elas refletem a vida da periferia na época em que foram escritas. Além dos internos, algumas mães também assistem as oficinas com seus filhos, pois a unidade possui um programa de acompanhamento familiar. Segundo a diretora da casa Ipê, a psicóloga Helena Amaral Lotufo, muitos pais começam a acompanhar o rendimento escolar dos filhos pela primeira vez na Fundação Casa, já que é exigida a presença da família nos festivais e apresentações de final de ano.

 

        As salas de aula são divididas por série, e as mais cheias são as dos primeiros anos do ensino fundamental. A sala do ensino médio é vazia, com apenas dois alunos. A maioria dos internos estão “atrasados” no sistema de ensino formal, por já terem largado a escola antes de serem internados na Fundação Casa. Quando passam de ano recebem o diploma da Escola Associada.

 

        Apenas um interno sai do prédio para trabalhar. Todos os dias Rodrigo vai para a Câmara de São Paulo, no centro da cidade, para ajudar na cozinha. Ele tem 19 anos e está cumprindo medida socioeducativa desde 2013, por um roubo à mão armada. O adolescente criticou a escola que frequentava antes de ser internado e contou que nunca havia estudado tanto quanto na Fundação.

 

        Rodrigo conseguiu o estágio graças ao programa Bolsa Trabalho, da Prefeitura de São Paulo. O adolescente acredita que se existissem mais iniciativas como essa o índice de reincidência da Fundação seria muito menor. Em relação a proposta de redução da maioridade penal, Rodrigo afirma ser contra a medida, pois, segundo ele, “é trocar seis por meia dúzia”. Quando não está trabalhando ou estudando, o menor ensina violão aos outros internos. Suas bandas favoritas são Legião Urbana, Barão Vermelho e Ultraje a Rigor.

 

        Outro adolescente com quem conversamos, Pedro, de 16 anos, também não concorda com a redução: “Lá (no Centro de Detenção Provisória) é bem ruim, o menor vai sair pior do que entrou”. Pedro está cumprindo pena há 7 meses, por roubo de carro. O adolescente havia parado de estudar desde os 13 anos de idade, e agora retoma o oitavo ano no centro socioeducativo e faz oficina de Elétrica Residencial. “Minha mãe prefere eu aqui do que lá fora”. Dos 8 irmãos ele foi o único que passou pela Fundação Casa.

 

        Apesar dos cursos profissionalizantes e do exemplo de Rodrigo, ainda é pequena a porcentagem de ex-internos que conseguem emprego na área que estudaram dentro da Fundação Casa. Para Eduardo, de 15 anos, dificilmente seu curso de Panificação Artesanal vai lhe abrir portas: “Lá fora o pessoal não acredita em nós”.

       

 


 

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